terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Any Mayer

Capítulo 2

Havia muitas pessoas em Nortonville. Muitas não, o suficiente. O dia-a-dia agitado, e as preocupações cada vez mais corriqueiras distraiam cada habitante com seus afazeres e com seus mundinhos-particulares-fechados-em-si-mesmos."O individual se sobrepõe ao coletivo" – acho que li isso, certa vez, em um livro velho de sociologia e percebi o quanto era aplicável à minha realidade. Ninguém se preocupa com ninguém, ou melhor, ninguém não se preocupa com alguém e alguém se preocupa somente consigo mesmo; fabuloso. Até que, de repente, uma pessoa, ou um alguém, num gesto de extrema gentileza lhe estende a mão após uma queda; mostra-lhe - através de um toque sutil, amável e delicado- que em meio a tanta selvageria ainda restava um pouco de civilidade e compaixão.

-Deixe-me lhe ajudar – disse a voz num tom quase que angelical, já com suas mãos tocando as minhas. Aceitei a ajuda de bom grado.

Suas mãos eram macias como um vestido de seda que eu sempre almejara e tocara ao passar por uma loja no centro da cidade; eram tão quentes que seria capaz de apostar que ela havia acabado de tomar um chá naquelas xícaras inglesas (aquelas sem alça). Tocá-la despertaram, em mim, alguns desejos que sempre mantivera em meu subconsciente, sempre reprimira; desejos os quais jamais acreditei que aflorariam fora dos meus mais devassos sonhos. Como um simples toque poderia me fazer sentir essas coisas? O que eu sentira não era normal. E eu, era normal. Deveria ser pelo menos. Deveria sentir o que as pessoas normais sentiam. Não poderia sentir essas coisas. Assustei-me.

Curiosa, levantei meu rosto em direção ao dela. Era simplesmente... linda. Tinha a pele clara, o cabelo ruivo e curto – um corte moderninho, meio torto pra esquerda- com uma franja que cobria boa parte de sua testa; seus olhos eram verdes (extremamente verdes) e seus lábios eram bem traçados, carnudos e munidos com um piercing do lado direito– olhá-los me provocava algo que não deveria provocar. Trazia no dia, como acessório (necessário, acredito) um óculos com armação vermelha que possuíam lentes finas e quadradas. Peguei-me admirando sua beleza por algum tempo, até que ela me trouxe à realidade.

- Você está bem?- Disse a voz mais aveludada que já ouvira.

- Ah,ah, sim estou. Obrigada por perguntar...

- Que isso!Ajudar nunca é demais – disse olhando fixamente meus olhos. Não conseguia raciocinar. Não tinha respostas para aquele ser tão apetecível.

- Hein, já passou! Relaxa, pode conversar comigo! Eu não mordo! - disse ao mesmo tempo em que abriu um largo sorriso e completou – a não ser que peçam!

Caímos, as duas, na gargalhada. Eu não estava acostumada com isso, não estava acostumada a receber tanta atenção. Foi a primeira vez que senti que alguém se importava; que alguém se preocupava com meus sentimentos. Senti que havia falhas em minha teoria sobre “ninguéns e alguéns” não se importando com “alguéns e ninguéns”.

Os risos cessaram. Fiquei por algum tempo encarando-a. Nunca havia visto ela ali no colégio, muito menos na cidade. Nunca havia notado extrema harmonia de proporções. Talvez seja porque eu nunca via nada; olhava, mas não enxergava; via, mas não interpretava, não decodificava. Mas ela, agora com forma definida, porém ainda sem nome, tinha algo de especial, algo mágico até. Não percebê-la seria injusto, seria como comer a famosa fruta proibida – um pecado irrevogável.

Senti que meu coração começara a acelerar. Ela me olhava com curiosidade e parecia ter percebido o quão alterada eu estava, parecia ouvir cada batida arritmada em meu peito.

-Acalme-se, menina! – exclamou com uma simpatia contagiante.

- É...estou calma.... Mais uma vez, me desculpe pelo transtorno. Sou tão desligada às vezes que mal percebo as pessoas a minha volta! Me perdoe se...
- Como é seu nome? - interrompeu-me, delicada.

-Any, Any Mayer. – apavorei-me. Porque ela estaria interessada em saber meu nome?

- Will, Will Demczuk. - estendeu sua mão a fim de me cumprimentar. Achei esquivo seu nome, para mim Will era um nome masculino. Tomei coragem e ia comentar o fato, mas ela sempre era mais rápida.

-Vem de Willow, não se assuste. – riu calorosamente.

Eu ficava cada vez mais confusa. Não sabia se minha afeição por ela vinha devida sua gentileza e simpatia incomparável, da sua beleza fora do comum ou da importância que ela dera a um ser tão repreensível com eu. Talvez eu a invejava por ser... assim. Não sabia o que eu realmente queria dela; companhia? Amizade? Claro, só existiam essas duas opções – pelo menos as únicas que eu tentava assumir para mim mesma.

- E então, você estuda aqui, Any?-fez a íntima. Meu nome pronunciado por sua boca parecia a mais bela palavra, possuía o mais belo som.

- Sim, estudo. Agora, limitava minhas respostas ao máximo. Mas não adiantava, Willow parecia ser capaz de adivinhar cada passo meu, cada pensamento e cada frase mal formulada por mim e não expressada.

- Ahn, entendo. Eu cheguei ontem na cidade. Estou trazendo uma papelada infernal para fazer minha matrícula – sorriu.

Em meio a tantas perguntas possíveis de serem formuladas, disse:

- Legal... e, e em que série vai entrar? – tentei perder um pouco da minha timidez.

- Terceiro – respondeu.

- Terceiro B – disse baixo. Não havia compreendido, pedi para que repetisse.

- Terceiro B, B de bola, B de baixo, B de bisca, turma B, oras! – disse. Em seguida, chegou a cinco centímetros de meu ouvido e sussurou – B de bissexual, Any.

O que era aquilo?Escandalizei-me. Eu sabia o que era aquilo, mas o que era aquilo externalizado, falado?! Meu rosto enrubesceu-se no mesmo instante. Até mesmo ,eu, pude ouvir as batidas cada vez mais fortes que meu coração insistia em dar. Em meio a tantas palavras, porque justo aquela? E dita baixinha em meu ouvido? Vários modos de reagir passaram pela minha cabeça, inclusive, dar-lhe um empurrão e insultá-la: sapata!

Willow começou a rir fervorosamente. Provavelmente percebeu como a situação fora constrangedora para mim. Acenou com a cabeça, pegou seus cadernos e vários papéis e saiu em direção a secretaria do colégio – sempre rindo. Eu estava paralisada no mesmo lugar onde havia ouvido a palavra bissexual. Mal me dava conta do que tinha acontecido. Não conseguia administrar minhas emoções – eram muitas, e eram confusas.

Ainda caminhando, Willow olhou para trás e gritou.

- Turma B, Any! Turma B!

Que diabos de turma B que essa menina tanto falava? Não conseguia entender. Eu achei a piadinha com o “B” extremamente sem graça e agressiva e não entedia a ênfase que uma estranha, que eu acabara de conhecer, estava dando na letra. “Turma B, Turma B’’ peguei-me murmurando.

Eu estudava no Terceiro B.


domingo, 11 de janeiro de 2009

Any Mayer

Capítulo 1

Era pra ser mais um dia. Normal, como os outros. Comum, para uma pessoa comum, como eu. O sol invadia meu quarto com tamanha força que, ao abrir os olhos, tive a sensação de que minhas retinas queimavam; uma lágrima caiu instantaneamente. Levantei-me lentamente, como de costume, tirei meu pijama estampado com flores e decorado com lantejoulas – cafona, mas era presente de minha mãe, eu a amava, eu o usava - e me dirigi para o banheiro. Tomei meu banho; frígida, ensaiei uma masturbação, me sequei e voltei ao meu quarto. Vesti uma calcinha que ganhei de natal de minha avó – vermelha e com babados em azul-marinho -, um velho e surrado jeans e uma laforet roxa. Estava animada, e geralmente quando estou com um bom estado de espírito, arrisco usar meu all star verde (desbotado pelo tempo) que comprei aos 15 anos, ou seja, dois anos atrás.

Desci as escadas e avistei a mesa; lá estava Arns, meu pai, e Leslie, minha mãe, ambos me esperavam para o tradicional café em família, - cabe acrescentar que em nossa casa tudo era extremamente simples, não víamos no luxo uma solução para nossa infelicidade; vivíamos, e isso já bastava- café, pão e margarina, sempre. Essa era nossa realidade, e sabíamos lidar bem com ela.

- Any, meu amor, sente-se a mesa! – disse minha mãe, antes mesmo que eu descesse às escadas; era nítida minha pressa.

-Mãe, pai, desculpe-me, é que estou muito atrasada – objetei enquanto pegava minha mochila que se encontrava jogada ao lado do nosso velho sofá. Leslie murmurou alguma coisa e despediu-se de mim com um aceno de mãos; Arns, meu pai, ficou indiferente, como sempre.

O caminho até o colégio não era longo, nem curto: era o caminho até o colégio- algo que me irrita é calcular tempo e distância; o professor Carl, sabe bem do meu drama, minhas notas em física não me deixam mentir; então não calculava nada, só andava, seguia em frente, tipo Johnnie Walker.

Eu dificilmente reparava em detalhes, mas naquele dia – em que a luz entrou em meu quarto (e em minha vida?) como uma intrusa- comecei a perceber, ou ao menos tentar perceber, o mundo a minha volta. Árvores, flores de todas as cores, pássaros, pessoas – existiam muitas em Nortonville, não sei ao certo quantas. O céu já estava claro, o clima era ameno (havia acertado na escolha da roupa), um vento insistia em cortar meu rosto, trazendo toda poeira e folhas da cidade contra minha pele oleosa e com algumas espinhas.

Passado alguns minutos já estava em meu colégio. Sentia algo de diferente no ar; não acreditava em sexto sentido e, certamente, não me via como uma pessoa sensitiva; mas sentia que algo grandioso aconteceria, era perceptível – ao menos para mim – que uma mudança estava para ocorrer. Como de costume, me encaminhei – sempre atenta e a alerta aos possíveis sinais- até minha sala. As aulas passaram normalmente, uma atrás da outra; o dia estava sendo comum; estava sendo normal, estava como sempre fora.

Meio dia. Fim da última aula. Enquanto o professor terminava de passar as instruções para um trabalho prático de biologia, eu , ansiosa como sempre, já guardava meus materiais e imaginava o que estaria por vir, o que mudaria na vida de Any Mayer. “Então é isso, até semana que vem pessoal.”, essas palavras eram como um copo de cerveja extremamente gelado em um dia quente na Califórnia. Peguei minhas coisas e saí da sala.

No colégio, não me encaixava em nenhum “grupo social”: era feia demais para ser líder de torcida, inteligente de menos para o grupo de xadrez, desastrada demais para o time de vôlei, esquisita de menos para ser gótica. Não tinha amigos – hum, a não ser a Dulce, dona da lanchonete, que sempre conversava comigo sobre beterrabas e a falta de educação de alguns meninos na hora de comer. Eu não me importava com isso, mesmo. Sempre gostei de estar, como dizia minha mãe, a margem da sociedade. Ás vezes eu chegava a pensar que não era desse planeta – estes pensamentos exteriorizados me custaram 10 sessões com uma psicóloga amiga de Leslie.

Como disse, a aula havia acabado e nenhum sinal da “grande mudança”. Sentei em um banco que ficava em frente ao meu colégio, assistindo a uns meninos que faziam manobras radicais com seus skates – pelo amor de Deus; já estava desencantada com a possibilidade de mudanças.

Estava exausta, não queria mais ficar ali – os garotos de skate me aborreciam-, levantei-me e me dirige ao portão de saída. Havia dois grandes muros que sustentavam o velho portão enferrujado, tais muros limitavam a área de visão das pessoas que e entravam e saiam do lugar. Eu , distraída , me dirigia cada vez mais rápido – e sem sequer olhar para frente- para a saída.

-Ai! – uma voz gritou. Percebi que com minha pressa havia esbarrado em alguém.

- Me desculpe! Como pude não ver você – disse ainda de cabeça baixa, recolhendo os cadernos da pessoa com quem havia entrado em choque – Nossa , me desculpe mesmo! Como sou .....desastrada. Levantei o rosto rapidamente para tentar identificar com quem conversava, fiquei meio desorientada, a velocidade do meu movimento me fez perder o senso de equilíbrio. Caí.

Segundos depois, ví uma mão com as unhas bem feitas, com um esmalte em tons de vermelho-vinho me oferecendo ajuda para levantar. Aceitei. Quando peguei a mão da pessoa ,cujo o rosto ainda era desconhecido , senti um frio imenso na barriga, algo que nunca sentira antes. Fiquei inerte por um tempo – estava tentando controlar e identificar as emoções e sensações que passavam pela minha mente.

O dia continuava lindo. O sol continuava a pino.