sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

encontro de lispector com deus ( ou de deus com lispector).

- Clarice?

- Pois não?

- Finalmente nos encontramos.

- Com quem falo? Quem me aguardava? Onde você está?

- Aqui

- Não posso enxergar-te.

- Por enquanto.

- Tudo para mim, até após a morte, insiste em ser um mistério.

- Me responda, considera que sua passagem pela Terra foi algo proveitoso?

- Não sei dizer.

- Não me entende?

- Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado.

- Então...

- Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.

- Eu te entendo.

-Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca. Se você me criou, seria esperado que me entendesse.

- Não te entendo.

- Aqui se pode fumar?

-Não me importo.

- Creio que fui enterrada com um maço de cigarros...

- Fique a vontade.

-...aqui está.

- Você foi ousada em tentar desvendar o ser mais enigmático que criei.

- Eu falhei nesta missão. Tentei ,mas o que eu sinto não é traduzível.Eu me expresso melhor pelo silêncio. E como ninguém conseguiu ler meu silêncio...sinto que falhei.

- Está calma para quem sempre temeu a morte.

- Temia, mas ainda creio que é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Não é justo. Ou seria?

- O justo é relativo , Clarice.

- Deixe-me voltar?

- Para onde?

- De onde eu vim.

- Você já foi e já voltou de tantos lugares

- Sempre desconfiei.

-Várias vidas, várias formas, várias experiências. Muitas Clarices.

- Sentia isso em mim.

- E pra que voltar?

- Você bem deve saber que o que obviamente não presta sempre me interessou muito.

- Quem é Clarice?

- Você disse que me entendia.

- Te entendo. Quem é Clarice?

- É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

-Quem é Clarice?

- Porque insiste?

-Por que gostaria de descobrir.

- Não escondo nada.

- Sei bem que não.

- Eu sou uma longa frase com um ponto de interrogação,varias virgulas, mas nenhum ponto final.

- Eu sou seu ponto final.

-Não é possível. Não tenho fim.

- Realmente, você nasceu para tomar conta do mundo.

- Sei bem; nasci incumbida.

- Você não volta mais , Clarice.

- E porque não?

- Sua missão já foi cumprida. Eu preciso de você aqui.

- A Deus eu só poderia dizer adeus. O que precisa de mim?

-Que me ajude a compreender minha obra.

- Cada artista que compreenda o que fez. Se lhe fugiu das mãos a interpretação,sinto muito.Não lhe posso ser útil.

-Não é assim.

- E como é?

- Você é parte de mim. Uma grande parte de mim que mandei a Terra.

- E por que fez isso?

- Os homens mereciam um pouco dessa nossa lucidez embriagada por devaneios.

- Isso dei a eles, certamente.

- Então fico?

- Fica.

10 comentários:

diana stivelberg disse...

vc me surpreende cada vez mais

amei, amei, aaamei
tudo fez o maior sentido. deu até pra imaginar...
beijão

Anônimo disse...

lindo

Ilana Stivelberg disse...

perfeito.

estou até sem palavras para poder exprimir. vou pedir um café, como Lispector faria.

te amo, melhor amigo.

Anônimo disse...

Lindo mesmo. Intenso. Perfeito.

Anônimo disse...

bom demais! surpreendente, impactante, raro.
te agradeço por esta preciosidade.
siga em frente...
bjs
Ita

Unknown disse...

Puxa, AMEI!!!!
Parabéns.

Aure disse...

AAAAMEI! Perfect!!!

Anônimo disse...

Magnífico.

Vinícius Alexandre Fortes de Barros disse...

Realmente, muito bom!

Mariana Braga disse...

Demais! Ainda mais pra quem gosta da fenomenal Clarice Lispector. Parabéns!