terça-feira, 12 de abril de 2011

Santa Sina

Os sinos da igreja batiam. Já era próximo das 10 horas e Madame M se arrumava em seu aposento. Abriu seu guarda-roupas e escolheu seu vestido mais longo, mais negro, mais sedoso. Apesar de ser usado só em ocasiões como a que ocorreria no dia, tinha seu charme e toda a elegância da dona. Era bonito, trazia algumas pedras azuis e alguns brilhantes que ajudavam a costurar o grande decote. Como é bonito, nunca vi em lugar algum algo tão sublime. Se existe perfeição, ela foi toda costurada junto a minha mais valiosa peça. Depois de vestida, foi até seu grande armário, no qual se encontravam exemplares únicos de sapatos de grandes estilistas europeus com os quais, vez ou outra, toma um delicioso chá às 5 – como mandava a tradição. Fechou os olhos e passou as mãos, sentido a textura de cada um. Estava decidida que, naquele dia, iria se deixar levar pelas sensações, pelo o que sentia. Não... não... não... este é o que vou usar. Abriu os olhos e , antes mesmo de enxergar o que tocava, retirou-o do armário com toda a intimidade de quem conhece seus pertences. Sabia que seria você. Escolheu um preto, que quase se confundia com o azul marinho, dono de um salto enorme. Dirigiu-se a um antigo baú e dele retirou um lindo colar no mesmo tom das pedras que estavam no vestido. Encarou um espelho que ficava em frente a sua cama e suspirou. Só mais este detalhe e... pronto. Passava a mão por cada pedra, sentindo-se dona do mundo e muito poderosa.

Madame M olhava insistentemente seu reflexo como se dele quisesse retirar alguma resposta. Por mais que tentasse passar a imagem de uma mulher segura e centrada, estava nervosa.

- Madame, todos..

- Quer me matar do coração, Alice? Desaprendeu a bater na porta?

- Perdão senhora, é que..

- Senhora? Tenho cara de senhora? Senhora é a sua mãe, que certamente já passou dos 50.

- Senhorita, perdão, mas é que...

- Sua inconveniente. O que quer aqui, diga logo antes que eu perca minha paciência.

- Madame, todos já estão pontos e aguardam por você.

- O carro que pedi já está estacionado no lugar de costume?

- Certamente que está.

- E as pestes?

- Seus filhos?

- Não me faça perguntas com perguntas. Como você me irrita, Alice.

- Perdão. Mateus e Marcos já estão no carro e aguardam sua presença.

- Já vou. E desapareça daqui.

- Até breve, Madame.

A governanta encurvou-se e saiu rapidamente do quarto. Madame M procurava sua bolsa. Odeio funerais, odeio. Sim, era minha mãe, mas qual o problema? Todos tem que partir algum dia, todos. Essas convenções sociais que ditam como se sentir em determinadas situações.. não, eu não estou triste, estou preocupada. Preocupada porque era ela quem cuidava dessa casa, quem colocava ordem nesses serviçais insolentes, quem olhava pelos meus filhos e observava a cozinha todos os dias, para que não envenenassem nosso alimento.. ah, o veneno. Desse tipo de gente pode-se esperar de tudo. E quem disse que essa complicação da saúde de mamãe não foi provocada por algum empregado da casa? Preciso me cuidar, era tão bom ter alguém para tomar conta disso tudo, agora estou só. Só não, estou com as pestes, Alice e os criados.

Madame M saiu do quarto e foi em direção as escadas. Era alta e tinha muitos degraus. De lá, podia observar toda sala e dez de seus empregados, dispostos 5 de cada lado da escadaria imensa, cabisbaixos. Desceu arrastando o longo vestido sem olhar para os lados.

- Estarei de volta para o almoço.

Entrou no carro preto e seguiu em direção a igreja. Os filhos de Madame M pareciam estar bem abatidos com tudo o que ocorrera. Olhos vermelhos e cheios de lágrimas.

- Mamãe, ela não volta nunca mais?

- Não – Foi seca e objetiva na resposta.

- Mamãe, ela não vai mais cuidar da gente?

- Não.

- Nem do jardim?

- Não.

- Mas as plantas vão morrer e..

- Tudo nessa vida morre, meu filho. Você já está bem grandinho e precisa entender isso. Seja homem, já tem 10 anos.

- Temos 9 mamãe.

- Isso, sejam homens – disse enquanto retocava o batom forte vermelho-sangue. Continuou – Mas não homem como o pai de vocês, aquele cretino. Pelo menos me deixou uma generosa herança.

- O que é herança, mamãe?

- Coisa de gente adulta, não lhe interessa.

Mateus e Marcos sofriam com a perda da avó, viam nela a mãe que nunca tiveram. Apesar de estarem acostumados com a secura da mãe, cada palavra mal dita machucava os meninos como um tapa na cara em um dia frio.

Já vamos chegar e isso tudo vai acabar. Eu não suporto a ideia de vê-la gélida e estática dentro de um caixão, é muito para eu digerir. Esse esmalte... preciso demitir o maldito que o comprou. Ah minha mãe, de que adiantou tanta bondade? De que adiantou essa vidinha medíocre passando tardes e mais tardes junto àquelas plantas fétidas ... preciso dar um jeito de acabar com aquela estufa nojenta. Todo esse amor pelos meus filhos, coisa patética, eles são meus, só meus agora. Eles nunca precisaram da sua atenção, mas eu os deixava com você, estava ficando velha e precisava se distrair. Tudo bem, confesso que gostava de ficar livre dessa obrigação, as pestes não me deixariam em paz. Onde já se viu criar intimidade com serviçais? Trocar intimidades com subalternos, expor-se a Alice como se esta fosse capaz de compreender o que se passa em nosso mundo? Coisa absurda... é, definitivamente, a insanidade havia chego. Minha pobre mãe. Vou sentir saudades, ah se vou. Vai ser tão estranho aquela mansão sem você.. agora teremos mais um quarto de visitas, ou de empregados.. empregados em cima? Jamais. Um quarto para os pequenos se divertirem, talvez até usem suas jóias mamãe, seus vestidos, usem sua maquiagem caríssima francesa e brinquem de teatro, imitando aos príncipes e princesas de nossa terra. Que brinquem de teatro, mas que sejam diplomatas. Ou médicos. Nunca se sabe o dia de amanhã... e se minha fortuna extinguir-se? Não posso correr este risco. Risco? Que risco? O depois, os distante, o que ainda está por vir me dá ânsia. O incerto, o imprevisto, o não-reto me causam uma enorme enxaqueca. Pro diabo o que vão ser. Na melhor das hipóteses caso-me novamente com outro velho milionário asqueroso, faço-lhe um chá de coroa-de-cristo e já cumpro o cerimonial de apresentá-lo a mamãe. Hum, afazeres domésticos, nunca soube o que é isso e não pretendo saber. Você cuidava de tudo, era tudo tão organizado, tudo tão perfeito. E agora? Egoísta, deixou-me aqui com tanta responsabilidade, com tantas coisas a serem feitas. Vida injusta, Deus de merda, porque não levou Alice, ou nosso jardineiro? Tanta gente que não merecia estar aqui; gentinha, gente pequena, animais. E quanto a mim? Como fico? Vida injusta, porque? Será que posso achar outrem para fazer o que mamãe fazia? Bem que poderiam vender mães por aí, mas teriam que ser tão eficientes quanto a minha. Dar conta de uma mansão daquelas, daquele tanto de subordinados e ainda sair com meus filhos, olhar as plantas. E agora, como eu fico? Pisaram no meu calo, agora vão sentir o poder do meu salto.

O velório havia chego ao fim. Madame M cumprimentou aos amigos que vieram das mais distantes cidades para dar um último adeus a tão bela senhora. Entraram no carro e voltaram para casa sem nem aguardar o sepultamento. Parem de chorar pestes, já estaremos em casa. O carro estacionou e todos desceram. Entrou pela sala com um ar soberbo e assustador. Encarou aos empregados.

- Todos para seus aposentos – ordenou sem pestanejar.

Viraram as costas e, sem fazer qualquer questionamento, saíram.

- Você não, Alice. Você fica.

Sem entender a moça voltou.

- Hoje quero que todos almocem juntos. Minha santa mãe gostava muito de vocês e acredito que ficaria feliz em ver isso , seja onde estiver. Teremos uma mesa farta ... quando estiver pronto, avise aos empregados. E para cozinha, Alice.

- Sim, senhora... Senhora?

- O que foi, Alice?

- Achei tão bonita sua atitude – emocionou-se.

- Faça uma comida deliciosa.

- Certamente.

- Alice, melhor, vou acompanhá-la, quero ver como é que prepara nossos pratos.

- Será um prazer senhora.

As duas dirigiram-se a cozinha. Passado algum tempo Madame M, ainda com seu vestido negro, balançou um sino chamando a todos para almoçar. Eis surgiram, ainda meio sem entender o que ocorria, e sentaram-se a mesa que já estava posta. A luz baixa que a iluminava fazia refletir o brilho das louças de prata e dava brilho às taças de cristal. A vibração do sino podia ser sentida como uma onda sísmica que atravessava todos os objetos. Ouviu-se um sussurro. Sentada entre seus dois filhos, Madame M ergueu elegantemente uma linda taça, quase um cálice sagrado.

- Tomai e comei. Mamãe vai gostar. Mamãe vai adorar.

Todos comiam sem modos algum. Nunca tinham visto tanta comida em um almoço. Madame M servia, sorrindo, cada um de seus filhos com garfadas generosas de porco assado. Observava a situação com uma falsa doçura. Malditos.

Olhou para Alice e acenou com a mão enquanto comia uma folha de alface.

Já Alice ensaiava algumas lágrimas entre um pedaço de porco e um gole de vinho enquanto suspirava.

- Eis que estou convosco até o fim.

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